decifra-me ou devoro-te

eu nada sabia, adivinhei. quem poderia ver além do rosto de mistério e silêncio, à espreita? não tive medo, arrogante que sou, invadi seu espaço e abri janelas, portas, entrou o vento e o sol brilhando na poeira do ar, estrelas à luz do dia. só os olhos me intrigavam um pouco nela, um certo brilho que eu não soube interpretar. era fome. brincante, me entreguei ao jogo de descobrir segredos em labirintos. mal sabia eu que quanto mais explorava, mais me perdia. perdi-me (felizmente) em curvas e rosas, branco-leite e pontos, constelações de pele, cheiros doces e uma ânsia que começa como um zumbido de cigarra, e cresce. tudo começa como um suspiro, do encontro de dois seres idênticos, potencialização da doçura de peitos que alimentam e acolhem e também de uma fome que nunca se extingüe, do desejo maior que a vida. uma leoa-mulher mostrou seus dentes e eu me vi felina filhote, uma gatinha amarela lambendo as patinhas, os bigodes tremendo só com a respiração da uma fera legítima. me arrisquei: minha língua brincava de leve e era quase nada naqueles pêlos, minha saliva fazia brilhar ainda mais o que já era resplandecente. ela se riu de mim, doce, me mostrou como se brinca. muitos dourados e brancos e luz nos rosas molhados, línguas de felinos (ásperas, maleáveis), patas com garras que prendem como algemas.
seu silêncio -- só quebrado por quase brisas de som, presentes para os meus ouvidos -- aumenta a tensão em mim. aguça todos os meus sentidos, me faz procurar mais e melhores caminhos nesse labirinto. cada resposta, cada curva me arrepia e comove, quero saber mais, caminho descalça. acredito totalmente que sei onde estou, que chego ao centro do que ela é, mas quando menos espero me vejo apanhada nos seus cabelos, pernas e braços; não quero me desvencilhar nunca, quero mais. perdida, sonhando, me deixo e vejo você se alimentando de mim, do que em mim é mais doce. vejo a fome em você toda, em braços e pernas e na sua boca e língua que brilham. tenho medo de morrer envenenada com sua saliva, de sofrer torturas que jamais soube e (ah, sim) sofro. peço mais, querida, porque vejo uma fresta do seu mistério, daquele que sempre foi também o meu, esse motocontínuo de prazer e de sabor, o que nunca pára. labirinto eterno, no qual temo ficar pra sempre, se assim você permitir. você me leva pela mão, pelos pés, pelos meus dedos que você lambe tão vagarosamente e com tamanha ânsia que eu tremo toda, já não sei se quero seguir. meu corpo sabe, ele segue; eu acompanho atrasada, com passos trêmulos.
sou levada até todos os lugares que não conhecia, salas de espelhos sem fim, refletindo uns aos outros e eu me vejo ali o tempo todo, confundo onde estou e quem sou, pois você é o meu espelho. sinto-me abraçada, no útero, água morna e carne me cobrem, seu coração bate como se fosse o meu (tum-tum), toco a mim e (será que sou eu mesma?) você responde. não sei mais falar, eu olho e peço com minha boca absolutamente muda. um universo se mostra e eu transbordo de espanto e prazer, como se descobrindo uma nova vida: a minha, através dos mistérios dela.